RESENHA CRÍTICA DO TEXTO:
“Uma nova contratualidade”, de autoria de César Fiuza; Renata Barbosa de Almeida e Gustavo Pereira Leite Ribeiro
(Disponível em: <http://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/viewFile/76/72>)
Por Wallace Fabrício Paiva Souza
05 de junho de 2017.
O texto “Uma nova contratualidade” traz como tema o fato de o contrato não ser mais um simples acordo de vontades, havendo a evolução da autonomia da vontade para a privada. Não se permite mais a ideia de que há o contrato porque as pessoas quiseram contratar apenas, pois as pessoas são movidas por necessidades também. Importante, então, fazer uma releitura dos conceitos relativos aos contratos.
Como se verifica na doutrina contemporânea e em outras ciências, como na psicanálise, a vontade não pode ser considerada como autonomia, sofrendo uma série de limitações. Os autores (César Fiuza, Renata Barbosa de Almeida e Gustavo Pereira Leite Ribeiro), buscam, assim, um resgate da contratualidade, mas por meio dos novos elementos indicados pelas ciências jurídica e psíquica, na contemporaneidade.
Iniciando o texto por um breve histórico do contrato, considerando que conhecer um pouco a história do referido instituto facilita a compreensão de como ele se dá hoje, fala-se do contrato no direito romano, mais importante fonte histórica dos sistemas jurídicos ocidentais.
Os juristas romanos não conceberam o contrato como categoria geral e abstrata, reconhecendo apenas alguns tipos de contratos, com regimes legais autônomos. Criavam obrigação, mas não modificavam ou extinguiam, possuindo muitas formalidades. Não bastava a vontade, era preciso preencher solenidades específicas. Como trazido no texto: o contrato romano retratava a situação do indivíduo “ora por meio da proclamação de palavras sacramentais ou realização de gestos rituais, ora por meio da entrega real ou simbólica de coisas, ora por meio da inscrição da convenção em registro privado” (FIUZA; ALMEIDA; RIBEIRO, 2008, p. 13).
Sem as formas estabelecidas, o contrato não produzia efeitos, formando apenas uma obrigação natural. Por exemplo, o devedor não podia ser coagido ao cumprimento da prestação convencionada, mas se a cumprisse, o credor poderia reter o pagamento. O formalismo era importante no Direito Romano e não era somente no Direito, verificando-se também na religião, na política, nas festas.
Com o passar do tempo, todavia, essa formalidade excessiva foi sofrendo atenuações, com o surgimento dos contratos consensuais: venda, locação, mandato e sociedade. Mas nos demais deveria ser observado um extremo formalismo. Como se verifica, a regra era de que “o fundamento da obrigatoriedade do contrato, neste contexto, era o próprio sacramento constitutivo” (FIUZA; ALMEIDA; RIBEIRO, 2008, p. 16).
Mudando o período histórico, passa-se à análise do contrato medieval, que também seguia muitas formalidades, mas houve significativas transformações em virtude do incremento do mercantilismo e da emergência da doutrina canonista. Era comum constar nos contratos que todas as formalidades tinham sido cumpridas, ainda que não fossem. Verifica-se, então, uma abolição indireta da sacramentalidade.
Além disso, os canonistas defendiam a validade e a força obrigatória dos acordos de vontade, pois descumprir uma promessa assumida seria pecado. Como afirma Orlando Gomes, “o respeito à palavra dada e o dever de veracidade justificam, de outra parte, a necessidade de cumprir as obrigações pactuadas, qual fosse a forma do pacto” (GOMES, 2002, p. 5).
“O contrato começa a se estabelecer como instrumento abstrato, pois se confere força obrigatória às manifestações de vontade, sem os formalismos exagerados outrora exigidos” (FIUZA; ALMEIDA; RIBEIRO, 2008, p. 17).
No contrato moderno, há o triunfo do consensualismo, a partir dos reflexos do movimento iluminista (exaltação da razão). Pretendia-se superar a convicção medieval de que os únicos meios seguros para informar o agir e o conhecimento humano encontravam-se na teologia e na tradição. A valorização da razão consagra a vontade como elemento principal do contrato, fundamentando sua origem e legitimando seu poder vinculante, o que é verificado nas codificações da época, como no Código Civil Francês, Italiano, Espanhol, Português e Argentino. O Código Civil Brasileiro de 1916 não definiu contrato, mas seguiu as orientações da época também.
A função da legislação, da doutrina e da jurisprudência era proteger a vontade criadora dos contratos e assegurar os efeitos pretendidos pelos contratantes. Agora basta o simples consentimento entre os interessados para a formação dos contratos. E em matéria contratual, a lei passa a ter um caráter residual, podendo o contrato derrogar casuisticamente disposições legais, desde que não ocorra a violação dos bons costumes e da ordem pública.
O enaltecimento jurídico da vontade acabou pressupondo uma igualdade formal entre os contratantes. Todos os indivíduos eram considerados capazes de zelar pelos seus interesses e o contrato representava a verdadeira harmonização das pretensões. A diversidade de opiniões era pelos diversos modos de guiar a razão. Mas era necessário garantir que a vontade formadora do contrato fosse real, isto é, não fosse influenciada, surgindo a teoria dos vícios de consentimento. Mas, firmado o contrato com a vontade sem vício, ele havia de ser cumprido.
Como trazido por Roppo (1988, p. 34-35): “cada um é absolutamente livre de comprometer-se ou não, mas, uma vez que se comprometa, fica ligado de modo irrevogável à palavra dada: pacta sunt servanda”. Do vínculo ao qual se filiaram, espontaneamente, os contratantes não podem se desligar, sobretudo, por meio de alegações acerca da injustiça do pactuado ou de sua grande onerosidade.
Após, veio o contrato contemporâneo, a partir de uma necessária reformulação da noção de contrato e de sua disciplina legal. Destaca-se que o ambiente social atual é bem diferente daquele que moldou a imagem tradicional do contrato. No Brasil, por exemplo, a população cresceu consideravelmente.
A liberdade contratual, amplamente valorizada no contrato moderno, mostrou-se um poderoso instrumento de opressão e de exploração do contratante em situação de inferioridade econômica. Citam-se os contratos de trabalho, por exemplo, pois a escassez dos postos de trabalho fez o empregado ceder aos penosos desígnios do empregador.
Menciona-se, ainda, a revolução tecnológica, que contribuiu para a despersonalização do contrato, de modo que os contratantes não mais se conhecem, nem se identificam ou se encontram. “O diálogo perde espaço para o monólogo, pois apenas um dos contratantes cuida da regulamentação do conteúdo e dos efeitos do contrato, restando ao outro a possibilidade da simples adesão mecânica ao esquema formulado” (FIUZA; ALMEIDA; RIBEIRO, 2008, p. 24).
Junto com o processo de objetivação do contrato, cresce a intervenção estatal na sua disciplina legal, notadamente pelo fato de as técnicas contratuais contemporâneas abrirem uma margem bastante significativa para que os agentes em situação de superioridade econômica estabeleçam condições contratuais amplamente favoráveis aos seus próprios interesses, desconsiderando as legítimas expectativas daqueles com quem contratam, o que pode evidenciar tremenda abusividade.
“Não mais vinga o raciocínio segundo o qual todos os homens possuem condições para, por si só, zelarem pelos seus direitos” (FIUZA; ALMEIDA; RIBEIRO, 2008, p. 26). Considera-se, ainda, a boa-fé objetiva que deve ser observada por todos.
Ao final deste tópico, os autores (2008, p. 28) encerram com a seguinte passagem:
Em suma, parece-nos que, hoje, o contrato deve ser percebido como ato jurídico lícito, de repercussão pessoal e socioeconômica, que cria, modifica ou extingue relações dinâmicas de caráter patrimonial, formado pelo encontro de comportamentos típicos socialmente reconhecíveis, levados por duas ou mais pessoas, que, em regime de cooperação, visam atender suas necessidades e seus desejos, orientados pela preocupação fundamental de promoção da dignidade humana.
Estabelecidos esses pressupostos históricos, os autores passam à análise psicanalítica do contrato: entre desejo e necessidade. É importante esse debate, porque a psicanálise entende que “as atividades humanas são regidas, em verdade, pelo inconsciente, isto é, pela esfera do sistema psíquico na qual, precisamente, a racionalidade não se impõe; é dizer, espaço no qual a vontade não reina” (FIUZA; ALMEIDA; RIBEIRO, 2008, p. 29).
Nesse contexto, há o conceito de pulsão, que compreende o processo dinâmico por meio do qual se busca alcançar o objeto apto à realização da meta criada pelo impulso. Como explicam os autores (2008, p. 30), “aqueles estímulos endógenos ou externos (impulso) apreendidos pelo sistema psíquico – criadores dos representantes ideativos – tendem a uma descarga motora (meta) que, para ser obtida, depende da eleição e alcance de certo objeto”.
Todo esse entrelaçamento seria a pulsão, cujos elementos se dividem por natureza: os dois primeiros têm cunho somático; o último, inevitavelmente psíquico. Interessante observar que estímulos somáticos idênticos podem gerar apreensões psíquicas diversas, sendo encarados pelos sujeitos de uma forma diferente.
A realização da meta advinda de um impulso depende necessariamente do instrumental representante ideativo, ou seja, o sistema psíquico apresenta-se mesmo determinante em todos os atos do agente.
Freud define o ser humano com um ser de desejo e de pulsão, e a psicanálise parece não fazer diferenciações entre necessidade e desejo. Ainda que o estímulo sensitivo seja de ordem fisiológica, ele se sujeita a todo o procedimento pulsional que traz o desejo.
Sobre a necessidade, diz Juan David Nasio (1999, p. 51-52) que “é a exigência de um órgão cuja satisfação se dá, realmente, com um objeto concreto (o alimento, por exemplo), e não com uma fantasia”.
Esse tópico é encerrado, então, com a seguinte passagem:
para a psicanálise as condutas humanas advêm de motivações não aferíveis e controláveis racionalmente. A vontade não é fator decisivo. Afinal, de fato, nem sempre finalizamos o processo pulsional racionalmente, através da escolha do objeto real. E mesmo quando há esta determinação pelo consciente, ela a isso se resume, não abrangendo o elemento principal: a representação da meta, que se emoldura nos moldes das marcas de nossa psique. Repise-se, pois, que o desejo é alheio ao nosso controle racional e, sobretudo, é o que origina todas as nossas ações, dentre as quais se encontram, inclusive, aquelas voltadas para a satisfação das necessidades vitais. (FIUZA; ALMEIDA; RIBEIRO, 2008, p. 24)
Após essa análise de psicanálise, os autores passam à busca das funções do contrato, lembrando como são importantes para a conformação da própria sociedade, e é preciso fazer esse estudo. Ressalta-se, antes, que na evolução da sociedade, também se verifica que surge uma preocupação em favorecer ações vantajosas e não apenas desfavorecer ações nocivas.
Inicialmente, destaca-se uma função econômica, pois o contrato auxilia a circulação de riquezas, permitindo o acesso dos indivíduos aos bens necessários para sua manutenção e aos bens desejados tão somente. “Após o amadurecimento do capitalismo e o advento da revolução tecnológica, com o aparecimento da empresa, o contrato passou também a subsidiar a criação da riqueza” (FIUZA; ALMEIDA; RIBEIRO, 2008, p. 36).
A utilidade primordial do contrato é possibilitar a circulação e a geração de riqueza, por meio da jurisdicização das operações econômicas perseguidas pelos contratantes.
Além dessa função econômica, cita-se a função pedagógica, servindo o contrato como meio de civilização, de educação do povo para a vida em sociedade. As cláusulas contratuais permitem que os contratantes tenham noção de respeito entre eles e a si mesmos.
Outra função que deve ser mencionada também é a função social, bem polêmica principalmente quando se fala no Direito Empresarial. O contrato não interessa só às partes, mas a toda sociedade. Não basta movimentar a riqueza, tem que ser útil e justo.
Além disso, o contrato designa um importante instrumento para promoção da dignidade da pessoa humana e para melhoria do meio ambiente social. Ele tem que contribuir para a busca do pleno emprego, melhoria da distribuição de renda, facilitação do acesso aos bens essenciais, promoção da livre concorrência, preservação do equilíbrio, dentre outras situações. O contrato é ponto de encontro de direitos fundamentais.
A função social do contrato opera em duas dimensões: internamente, “designa a necessidade dos contratantes observarem padrões de lealdade e cooperação na consecução das operações materializadas pelo próprio contrato, repelindo o abuso do direito” (FIUZA; ALMEIDA; RIBEIRO, 2008, p. 40); externamente, “designa a necessidade de harmonização dos interesses dos contratantes com os interesses da coletividade, assim os contratantes não podem criar situações que violem direitos de terceiros” (FIUZA; ALMEIDA; RIBEIRO, 2008, p. 41), e nem vice versa.
Para encerrar o trabalho, os autores fazem uma observação importante, qual seja: “não se pode deixar de advertir que a função social do contrato não deve, nem pode, afastar o seu conteúdo econômico, mesmo a pretexto de cumprir uma atividade assistencial” (FIUZA; ALMEIDA; RIBEIRO, 2008, p. 42).
Contrato tem função econômica sim, sendo necessária a compatibilização com os anseios sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Como verificado ao longo do texto, a ideia de contrato evoluiu bastante ao longo dos tempos, e isso ficou evidente quando se começou a análise no Direito Romano até chegar os tempos atuais. Resta claro hoje que ninguém contrata só porque quer, porque tem vontade, mas porque as pessoas são movidas pelas necessidade e desejos.
Encontra-se neste trabalho, então, um diferencial que não se encontra nos demais sobre o tema, uma vez que foi feita uma análise sob o foco da psicanálise também, e não só meramente jurídica.
Outro ponto importante que se destaca no texto é que o jurista atual não se contenta mais com a simples delimitação dos elementos estruturais dos diversos expedientes jurídicos, dentre os quais se destaca o contrato, passando a preocupar-se também com as funções que podem ser desempenhadas no ambiente social.
E essa questão trabalhada com os contratos reflete diretamente numa nova leitura que se deve fazer do Direito Empresarial, onde se encontram os contratos empresariais. A empresa representa um papel de extrema relevância no desenvolvimento de toda a sociedade, sendo fundamental para o desenvolvimento econômico de uma região. Mas também há valores muito importantes e que estão acima de qualquer interesse financeiro, como a dignidade da pessoa humana.
Sem sombra de dúvidas, não se deve obstaculizar a possibilidade das atividades empresárias gerarem lucros, afinal são elas que geram empregos, tributos e riquezas em geral para a comunidade na qual estão presentes, com desenvolvimento econômico, social e cultural. Contudo, a forma de obtenção desse lucro deve observar práticas sustentáveis, com um parâmetro ético e social.
A CRFB/88, assim, buscou uma harmonia entre o econômico e o social, buscando privilegiar tanto a livre iniciativa como direitos fundamentais. É inegável, assim, a existência da função social da empresa no ordenamento jurídico brasileiro, não sendo meramente uma nova estratégia empresarial, mas uma imposição jurídica. Contudo, isso acabou não sendo apenas um ônus para o empresário, mas um instrumento de valorização de sua empresa. O mercado, hoje em dia, exige que as empresas cumpram com sua função social, sob pena de perderem investimentos, por exemplo.
Todavia, embora não se discuta a importância da função social do contrato, deve-se tomar muito cuidado para que não se amplie demais essa função social do contrato. Haroldo Verçosa (2011), inclusive, critica bastante essa ampliação excessiva da função social do contrato nos contratos empresariais, afirmando inclusive que
os advogados criativos terão que imaginar soluções para ultrapassar a visão de julgadores que têm aplicado tão livremente a função social do contrato em suas decisões, de maneira a fazer com que haja durabilidade no tempo quanto aos ajustes que houverem celebrado, nos precisos termos contratados, uma vez que o tenham feito segundo o Direito, que não pode ser tão flexível como aquela senhora da famosa ópera em que se canta que ‘la donna è mobile qual piuma al vento. Muta d’accento e di pensiero’.
Para se evitar essa interpretação de forma errada, fundamentais textos como os dos Professores César Fiuza, Renata Barbosa de Almeida e Gustavo Pereira Leite Ribeiro, para que se tenha com exatidão a compreensão da nova contratualidade.
REFERÊNCIAS:
*ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
*GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
*FIUZA, César; ALMEIDA, Renata Barbosa de; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Uma nova contratualidade. Disponível em: <https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/viewFile/76/72>. Acesso em 02/06/2017.
*NASIO, Juan-David. O prazer de ler Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
*ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988.
*SOUZA, Wallace Fabrício Paiva. As relações empresariais contemporâneas e a efetivação dos direitos fundamentais do idoso sob o foco da análise econômica do Direito. Revista de Direitos Fundamentais nas relações do trabalho, sociais e empresariais, Brasília, v. 1, n. 1, p. 320-342, 2015. Disponível em: <http://indexlaw.org/index.php/revistadireitosfundamentais/artic le/view/972>. Acesso em: 22/05/2017.
*VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. A função social dos contratos empresariais e o Judiciário. 25 de novembro de 2011. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI145625,61044-A+funcao+social+dos+contratos+empresariais+e+o+Judiciario>. Acesso em: 22/05/2017.