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RESENHA CRÍTICA DO TEXTO:

"CONTRIBUIÇÃO PARA UMA NOVA HERMENÊUTICA CIVIL-CONSTITUCIONAL", de autoria do Professor CÉSAR FIUZA

(Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5894>)

Por Wallace Fabrício Paiva Souza

29 de abril de 2017.

 

 

O texto se inicia com alguns questionamentos que demonstram a preocupação atual que vem ocorrendo com o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil. O Professor César Fiuza questiona, então, o que significaria esse fenômeno, de modo que apresenta algumas hipóteses que se encontram na doutrina, como o fato do Direito Civil se achar na Constituição ou a Constituição ter tornado o centro do sistema de Direito Civil.

 

Todavia, deve-se ter muito cuidado com essa interpretação, uma vez que a constitucionalização do Direito Civil seria o Direito Civil ter suas normas lidas observando os princípios e valores consagrados na Constituição, “a fim de se implementar o programa constitucional na esfera privada” (FIUZA, 2009). Ocorre que esse fenômeno ocorre tanto no ramo privado do Direito, como no público, não sendo exclusivo do Direito Civil, sendo esse um ditame do Estado Democrático de Direito que tem na Constituição sua base hermenêutica.

Embora haja quem defenda a Constituição como novo centro do sistema do Direito Privado, é o Código Civil que continua exercendo esse papel, sendo em torno dele que gravitam os microssistemas, como o imobiliário (que precisa das normas de posse e propriedade, obrigações e contratos) ou do consumidor (que precisa das normas da parte geral, obrigações e contratos). Como afirma o Professor César Fiuza, “seria incorreto e equivocado ver neste papel a Constituição” (FIUZA, 2009).

Mas, embora a Constituição não seja o centro do sistema juscivilístico, ela é o centro do ordenamento jurídico, como um todo, e é a partir dela que se interpretam as normas infraconstitucionais, considerando o Estado Democrático de Direito.

Para explicar melhor essa afirmação, o Professor César Fiuza traz um exemplo: seria lícito uma cláusula de um contrato entre duas pessoas permitindo que um castigue o outro? Olhando para o Código Civil tão somente, a resposta é não porque o objeto é ilícito (art. 104, II, CC/02). Olhando só para a Constituição, a resposta é não por conta do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR/88). A resposta correta para o referido Professor levaria em conta o papel central do Código Civil, mas lido à luz da Constituição. A cláusula seria inválida por ter objeto ilícito (art. 104, II, CC/02), e o objeto é ilícito por conta do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR/88). Parte-se do direito positivo para resolver o problema num enfoque constitucional.

Outro exemplo que o Professor César Fiuza traz é o questionamento se o imóvel residencial de uma pessoa solteira pode ser passível de execução por dívidas. A Lei n. 8.009/90 dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, e não existe família de uma pessoa só, logo o bem do solteiro poderia ser penhorado por dívidas.

Ora, a lei foi expressa que a proteção é para a família, se quisesse que se estendesse para a pessoa solteira estaria expresso também. “O alargamento da interpretação dessa norma mesmo com base em valores e princípios constitucionais, não se justificaria” (FIUZA, 2009), de modo que as vezes se pense na dignidade do credor também, dependendo do caso.

Todavia, é possível que se faça uma interpretação invocando o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR/88) a favor da pessoa solteira, de modo que seu único imóvel se torne impenhorável também. Houve uma “brecha” na lei ao se referir a dívidas do filius-familias, isto é, pessoa solteira. Ressalta-se, no entanto, que se não houvesse essa “brecha”, ainda com uma interpretação civil-constitucional não seria possível. Não se deve admitir uma interpretação descompromissada com a norma posta, apenas com base em valores constitucionais, deixando as questões ao arbítrio do juiz. Isso levaria a insegurança jurídica.

Cármem Lúcia Antunes Rocha, assim, define segurança jurídica na “garantia da estabilidade e de certeza dos negócios jurídicos, de sorte que as pessoas saibam de antemão que, uma vez envolvidas em determinada relação jurídica esta se mantém estável, mesmo se modificar a base legal sob a qual se estabeleceu” (ROCHA, 2004, p. 168).

Deve-se tomar muito cuidado com o princípio da segurança jurídica e se notam julgados que estão ampliando demais a interpretação do princípio da dignidade da pessoa humana. O Professor César Fiuza, por exemplo, relata um caso que viu no sentido de primo ser obrigado a prestar alimentos, contrariando o Código Civil e a Lei de Alimentos, que não trazem essa obrigação. Por mais nobres que sejam os motivos, não se pode ferir a lei e suprimir liberdades privadas.

Na sequência do texto, o Professor César Fiuza trata da evolução da civilística constitucional no Brasil, que passou pro três fases: a primeira com caráter meramente conteudístico, a segunda interpretativa, e a terceira programática.

Na primeira, com caráter meramente conteudístico, a preocupação era somente identificar o conteúdo do Direito Civil na Constituição, como ocorria em normas de Direito Contratual ou de Família, por exemplo. Este era o Direito Civil-Constitucional no final dos anos 80 e início dos anos 90, sendo o principal marco teórico a obra do professor da USP Carlos Alberto Bittar.

A segunda fase, interpretativa, levou a uma interpretação dos problemas de Direito Privado sob a ótica dos valores e princípios constitucionais. Essa fase ainda se encontra no ordenamento jurídico brasileiro, por se encontrar em um Estado Democrático de Direito, que tem como base a Constituição. O principal marco teórico dessa fase é a obra do Professor Gustavo Tepedino, que entende como centro do Direito Privado a Constituição, e não o Código Civil, inspirando-se nas obras de Pietro Perlingieri e Ricardo Luis Lorenzetti.

Por fim, a terceira fase, que é a programática, indo além da segunda fase ao se destacar a necessidade de se implantar o programa constitucional na esfera privada, por conta da elevação da dignidade da pessoa humana como fundamento da República. Esse programa consiste em promover o ser humano por meio de uma vida digna. O Direito Civil-constitucional, então, deve ser interpretado à luz da Constituição com a finalidade de implantar esse programa.

Mas como implementar esse programa? O Estado tem o papel de elaborar políticas públicas adequadas, como disponibilizar saúde e educação, garantir o pleno emprego, o acesso à justiça, dentre outras medidas, mas sem imbecilizar o indivíduo. E os indivíduos também possuem um papel importante, no sentido de não lesarem ninguém, observar a função social, dentre outras. E os indivíduos serão convencidos de que precisam implementar o programa constitucional, de modo que se não houver convencimento, haverá uma coerção mínima.

O que não se pode admitir é uma invasão abusiva na esfera privada em nome da dignidade ou função social, o que seria um retrocesso histórico. Deve haver um equilíbrio entre dignidade e liberdade, até porque um não sobrevive sem o outro.

 

Estabelecidos esses pressupostos, o Professor César Fiuza passa a abordar em seu texto os limites à interpretação civil-constitucional, pois uma interpretação radical pode levar à supressão das liberdades individuais na esfera privada, duramente conquistadas ao longo da história. Deve haver racionalidade na implementação dos direitos fundamentais, para que não haja perda da liberdade.

Um exemplo interessante trazido no texto é o caso do cinto de segurança, que o Estado de certa forma imbeciliza o destinatário da norma, como se ele não tivesse zelo por sua vida, obrigando que o colocasse. O único prejudicado de não usar o cinto é quem não usa, mas mesmo assim o Estado obriga e com apoio da população, fundamentando na dignidade, na saúde pública. Muito mais relevantes nas mortes de trânsito são “as ruas e estradas mal desenhadas e esburacadas, fruto da incompetência e da corrupção” (FIUZA, 2009). Outro exemplo é a lei que regulamenta a união estável, quase que impondo o casamento. Até o pão francês o Estado quis decidir como que será feito, determinando uma quantidade de farinha de mandioca na massa.

Nesse contexto, importante citar também o modo que o Estado lida com casos como o sequestro que ocorreu em Santo André de duas adolescentes, no qual a polícia teve a oportunidade de matar o sequestrador, mas não matou, talvez em nome de sua dignidade. Ocorre que como consequência, uma adolescente morreu e a outra ficou gravemente ferida. Questiona-se, então, que proteção é essa? Há uma vigilância exagerada do cidadão brasileiro, como ocorre no trânsito, por exemplo, mas será que não haveria coisas mais importantes para o desenvolvimento do Brasil? Essa visão distorcida do Direito está fundamentada na dignidade humana, função social e em outros valores, isto é, suprimem-se liberdades conquistadas na história em prol delas.

 

Nesse sentido, encontram-se a imposição de currículos nas universidades, retirando sua autonomia. Hoje um professor tem que observar um programa imposto e deve seguir normas rígidas da CAPES quanto às publicações, por exemplo. Por melhor que seja o trabalho produzido, se ele não estiver em um local melhor avaliado, de nada vale.

Isso também reflete no Congresso Nacional, que vota leis sem trazer a discussão para a sociedade, sem analisar os reflexos sociais e econômicos, demonstrando total desconhecimento, como na norma que impôs ao juiz decretar a prescrição de ofício em 2006. A prescrição interessa ao réu, sendo matéria de ordem privada, mas o Estado quer participar impondo algo em prol da dignidade humana. Ocorre que se agiliza o processo às custas da liberdade. Vale a pena?

 

É na liberdade que deveria ter início a dignidade e, consequentemente, não se preserva a dignidade extinguindo liberdades, com invasão na intimidade dos indivíduos de forma errada.

 

Ao final, o Professor César Fiuza traz um desabafo anônimo que encontrou na internet, que faz uma reflexão interessante: ferem-se liberdades em prol da dignidade, como no caso da “Lei Seca” que levou supostamente a uma diminuição nos acidentes de trânsito, mas se não tomar cuidado irão fazer um toque de recolher às 22h00min também para reduzir acidentes de trânsito, ou proibir que se dirija em estradas no final de semana, até que ponto se chegará? E o pior é que tudo é feito em nome da dignidade da pessoa humana. Fato é que o Estado cada vez mais está invadindo a esfera privada.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

 

Ao final do texto, no desabafo encontrado na internet que o Professor César Fiuza trouxe, lembrei-me de uma situação que me incomodou bastante no Estádio Governador Magalhães Pinto, o Mineirão.

 

Recentemente, houve a proibição de tomar bebidas alcoólicas tão somente na arquibancada, de modo que pudesse ser ingerida nos bares na área interna do estádio. Explicando melhor: pode tomar bebida alcoólica dentro do estádio, mas não pode ser ingerida na arquibancada enquanto se assiste ao jogo, sendo que o objetivo de se ir a um jogo de futebol em regra é ver o jogo.

 

Mas como fiscalizar isso? Ficam trabalhadores no acesso às arquibancadas impedindo que as pessoas que estejam com cerveja passem, mas em jogos muito cheios acabam passando e precisava fazer a fiscalização na arquibancada também, mas estavam confundindo com o refrigerante guaraná, pela mesma cor. Então o que se fez? Proibiram o guaraná na arquibancada por um tempo.

 

Não bastasse isso, a cerveja só pode ser retirada no bar do estádio até o final do intervalo do jogo, antes do início do segundo tempo. Qual o sentido disso tudo? Confesso que não consigo verificar uma razão de ser para essa norma, a não ser uma invasão da liberdade dos indivíduos que frequentam estádios. E como reflexo disso, as pessoas chegam ao estádio e ficam nos bares no entorno bebendo até faltar pouco tempo pro jogo, tumultuando sempre a entrada. Como se não fosse pouco, até o ovo no tropeiro proibiram por um tempo.

 

Outro exemplo problemático que se encontra é a relação entre a função social dos contratos empresariais e o Judiciário, como explicado por Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (2011). Segundo o autor, “a função social do contrato não se encontra conceituada e se mostra extremamente fugidia para o intérprete menos avisado, apta a um uso político ou jurídico ideológico, o que representa enorme perigo para a certeza e a segurança do Direito”. Ele apresenta, assim, alguns casos que o STJ aplica a função social do contrato indo no sentido contrário dos vetores de funcionamento específicos dos contratos empresariais, dentre eles a ausência relativa de informação sobre a outra parte.

Nessa mesma linha, cita-se passagem de um trabalho escrito por mim e pelo Professor Jean Carlos Fernandes (2016, p.41): o STJ e demais tribunais vêm entendendo que poderia haver vulnerabilidade de uma das partes na relação empresarial, o que ensejaria a aplicação do CDC, todavia, como explicado, o que há é dependência econômica, sendo essa típica nas relações empresariais, não gerando per si nenhuma irregularidade para o Direito. Apenas quando caracterizado eventual abuso que o Estado deve intervir.

Embora o Estado esteja buscando uma maior proteção, um desenvolvimento econômico-social exige um estímulo do empreendedorismo e a máxima tutela do crédito. Todo investimento decorre de uma análise de risco e qualquer atividade empresarial envolve um risco considerável. Cabe ao Estado, assim, gerar um contexto de riscos aceitáveis, sob pena de a economia fracassar. Não havendo um ambiente econômico propício ao desenvolvimento, toda a proteção do Estado não fará sentido, havendo reflexos diretos no desenvolvimento social.

Como trazido pelo Professor César Fiuza, o que não se pode admitir é uma invasão abusiva na esfera privada em nome da dignidade ou função social, o que seria um retrocesso histórico. Deve haver um equilíbrio entre dignidade e liberdade, até porque uma não sobrevive sem a outra.

 

REFERÊNCIAS:

*BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 02/04/2017.

*BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em 02/04/2017.

*BRASIL. Lei n. 8.009, de 29 de março de 1990. Dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8009.htm>. Acesso em 02/04/2017.

*FERNANDES, Jean Carlos; SOUZA, Wallace Fabrício Paiva. A aplicação da teoria do finalismo mitigado nos contratos empresariais pelo Superior Tribunal de Justiça e o desestímulo ao empreendedorismo. In: CATEB, Alexandre Bueno; GABRICH, Frederico de Andrade; SZTAJN, Rachel (Orgs.). Análise econômica e estratégica do Direito. V. 9. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016.

*FIUZA, César. Contribuição para uma nova hermenêutica civil-constitucional. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5894>. Acesso em: 02/04/2017.

*ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O Princípio da Coisa Julgada e o Vício da Inconstitucionalidade. In: ROCHA, Carmem Lúcia Antunes (Org). Constituição e Segurança Jurídica: Direito Adquirido, Ato Jurídico Perfeito e Coisa Julgada - Estudos em Homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2004.

*VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. A função social dos contratos empresariais e o Judiciário. 25 de novembro de 2011. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI145625,61044-A+funcao+social+dos+contratos+empresariais+e+o+Judiciario>. Acesso em: 21/04/2017.

 

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